Esse post foi feito no dia, somente visível para meus amigos no facebook (que são poucos, só os de verdade mesmo). Mas após ser duplicado nas listas que eu assino, resolvi publica-lo aqui. Lá vai:
Cinco de junho, sexta-feira, meio do feriado.
Frio, dia gostoso pra ficar debaixo da coberta.
Ao abrir os olhos, achei que ia acordar diferente. Mais sábio, mais experiente, mais seguro, mais equilibrado, sei lá. Mais qualquer coisa. Não só mais velho.
Achei também que iria acordar envelhecido, todo dolorido, cabelos brancos, sentindo o peso dos anos sobre as costas.
Um pouco disso aconteceu, é verdade. Mas os cabelos já se foram e se esbranquiçaram há uma década e meia e a dor nas costas me acompanha a mais ou menos o mesmo tempo.
No mais, acordei com as mesmas dúvidas, a mesma (in)experiência e a mesma medida de loucura que tinha ontem à noite.
Nada mudou de ontem para hoje, embora muito tenha mudado nesses cinquenta anos.
Disse um personagem do García Marques que “aos 50 tenho consciência de que quase todo mundo é mais moço que eu”. Mas ele disse isso ao completar 90. De qualquer maneira, ainda assim estranho as pessoas me chamando de “senhor”.
O cara que acordou hoje, citando o lugar-comum da analogia ao balde de jabuticabas, já está se dando conta de que tem mais casca e caroço cuspido no chão do que jabuticabas. Pegou algumas extraordinariamente deliciosas ao longo desse tempo, assim como muitas azedas e outras tantas amargas, difíceis de engolir.
No começo, mal sentia o sabor e já enchia a boca, comendo várias ao mesmo tempo. Agora, com mais calma - e com menos jabuticabas disponíveis, aprendi a aprecia-las melhor.Olho para as restantes e imagino quantas docinhas, no ponto, ainda estão lá, perdidas no meio das amargas e azedas – e podres – esperando para que eu as saboreie ou, pelo menos, as engula.
O cara que acordou hoje olhou para as cascas cuspidas e se lembrou de algumas jabuticabas. Aquela em que, aos 11 anos, ganhou sua primeira bicicleta e, com ela, seu primeiro tombo. Do par de patins e do primeiro joelho ralado. Do pai serrando tábuas e andando pelos ferros-velhos da cidade em busca de 4 rolamentos iguais para o primeiro carrinho de rolimã. E da primeira unha do dedão arrancada por ele (o carrinho, não meu pai). De descer com tudo as ladeiras do Alto Das Araras – já asfaltado mas ainda sem construções – e de ter que subir tudo de novo só para repetir a aventura.
O cara que acordou hoje se lembrou de ter seguido formigas para ver onde elas iam, que teve sarampo, catapora e caxumba, nadou em rio, tomou picada de abelha (e doeu), marimbondo (doeu mais) e formiga (nem tanto), caiu de árvore e do telhado, pegou carona em caminhão, fez aventuras de bicicleta indo 'bem pra lá da linha do trem' (e hoje mora bem pra lá de onde era a linha do trem), teve medo, chorou escondido, jogou bola com os amigos (e com isso perdeu amigos), sofreu bulling, comeu paçoca com banana, se maravilhou com o tamanho do céu, encheu a cara, prometeu que nunca mais faria isso e tornou a encher a cara, morou fora, morou sozinho, conheceu gente muito bacana, gente muito ruim também. Que dirigiu trator, soltou pipa no telhado e caiu, correu atrás de balão, dormiu em kiosk de praia e em coreto, dormiu no chão, passou frio, martelou o dedo e tomou choque no chuveiro.
O cara que acordou hoje se lembrou do primeiro foguete que fez junto com o Trololó e o Ca Louco. E do fracasso na primeira explosão. E da segunda também, e de todas as outras seguintes até finalmente concluir que explosivos eram muito mais divertidos que foguetes.
O cara que acordou hoje se lembrou que aos 16 conheceu o grande-amor-da-vida-que-iria-durar-para-sempre. E que acabou. E dos seguintes também, até finalmente encontrar com quem dividir o balde, até o fim.
Se lembrou também que aos 32 ganhou uma filha e perdeu uma irmã. Assim mesmo, bem rapidinho. E descobriu que a vida era assim mesmo e que as jabuticabas doces são sempre em menor número mas que, se a gente souber apreciá-las direito, consegue suportar todas as outras.
O cara que acordou hoje se lembrou de que resolveu voltar pra escola depois dos 40.
Pra fazer mestrado.
Em Física Teórica.
Trabalhando em dois empregos.Com a esposa grávida da segunda filha.
E riu dessa loucura insana total.
E que deu conta, embora hoje escute que "teve sorte na vida".O cara que acordou hoje se lembrou de que, aos 20, queria conhecer o mundo, trabalhar no exterior, ir à Lua, tocar saxofone, pilotar helicóptero e aprender chinês.
E riu de novo. Por ter sentido de leve o gostinho de algumas e pela cruel inviabilidade das demais.
Mas o cara que acordou hoje não está triste. Ainda há muito que fazer, novos horizontes para desbravar. Afinal, é da esperança de boas jabuticabas que sai a força pra tocar o barco.
Uma jabuticaba ao dia, até que só sobre o balde.
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